NOVO BATMAN EXIBE SUAS RAÍZES “PULP”
Roberto de Sousa Causo
Cerca de 100 anos atrás, pouco mais, pouco menos, as formas majoritárias de entretenimento estavam todas, literalmente,
no papel -- não existiam rádio nem televisão, o cinema ensaiava seus primeiros passos, e em países desenvolvidos como Inglaterra,
França e Estados Unidos, florescia um mercado editorial de revistas populares que misturavam artigos, reportagens, e ficção.
Nos EUA, um sujeito chamado Frank A. Munsey criou em 1896 criou a revista "The Argosy", que trazia apenas ficção,
criando uma nova tendência. Nas primeiras décadas do século XX, as bancas, farmácias, pequenas lojas e livrarias estariam
repletas de dezenas, centenas de revistas, freqüentemente apresentando um gênero por título. A maioria dos gêneros populares
que conhecemos hoje -- a história de detetive, a ficção científica, a fantasia, o horror, a história de amor e a de faroeste
-- se firmaram nas páginas dessas publicações, assim como vários outros que desapareceram ou que foram reabsorvidos dentro
do "mainstream" da literatura -- histórias de aventuras aéreas, de esportes, etc. Eram publicadas em papel fabricado
a partir de polpa vegetal, mais barato e com aquela aparência áspera que no Brasil chamamos de "papel jornal". Eram
as "pulp magazines".
Em oposição a elas, havia as "slick magazines", com um papel coberto com uma capa de material brilhante,
dando-lhe a aparência lisa ("slick", em inglês) daquele papel que chamamos aqui de "couchê". As "slick
magazines", que existem até hoje na forma das tradicionais "The Atlantic Monthly", "Esquire", e "The
New Yorker", publicavam e publicam ficção no meio de reportagens e outras matérias de não ficção, tinham grande circulação
e sobreviviam, em sua maior parte, de anunciantes. As "pulp magazines" não tinham essa facilidade e por isso buscavam
o grande público, investindo em histórias aventurescas e sensacionais. Daí o fato de "pulp" ter se tornado um adjetivo,
que cabe em um certo tipo de história, um certo tipo de personagem, uma certa abordagem popular da ficção.
Um elemento central disso que poderíamos chamar de "estética pulp" é o "herói pulp", que, nas
décadas de 1920 e 30 já era uma presença "multimídia", porque comumente migrava das páginas amareladas das revistas
para os quadrinhos das páginas dominicais sindicalizadas junto aos grandes jornais, ou para o rádio sob a forma de radionovelas.
Assim, Buck Rogers, criação de Philip Francis Nowlan para os quadrinhos, baseou-se em seu romance de ficção científica
primeiro visto como um seriado em "Amazing Stories", de 1928 a '29. Flash Gordon, de Alex Raymond, deve muito à
estética e às linhas narrativas da série Barsoon, aventuras marcianas escritas por Edgar Rice Burroughs, o criador de Tarzan,
outro herói pulp que foi para os quadrinhos e mais tarde para o cinema. Até mesmo o Super-Homem teria sido baseado na história
de Philip Wylie, "Gladiator", de 1930.
Uma outra estirpe de heróis pulp é representada por Doc Savage, que teve revista própria lançada em 1933, mas que
apareceu em vários programas de rádio e em filmes. Um super-homem em força física e intelecto, Savage divide o seu tempo entre
"A Fortaleza da Solidão", localizada em uma ilha gelada no Ártico (conceito emprestado mais tarde pelos artistas
que desenvolveram Super-Homem nos quadrinhos), e um armazém em Nova York, de onde ele se lança a ataques contra o crime organizado.
Doc Savage é um milionário, que tem acesso a uma fortuna em ouro, guardada pelos descendentes dos Maias, em algum lugar da
América Central.
Um herói de perfil semelhante, e origem anterior, é O Sombra, criação de Walter Gibson também vista nas "pulp
magazines", em radionovelas, seriados e filmes de cinema, incluindo um relativamente recente (1994), com Alec Baldwin
no papel do herói.
"O Sombra" é a identidade secreta do milionário Lamont Cranston (nas revistas, um disfarce do aviador Kent
Allard), que fora treinado em artes mentais no exótico Oriente e é capaz de disfarçar sua aparência real, surgindo diante
dos bandidos como um sombrio e alto pistoleiro brandindo duas automáticas .45 de cano longo. Ele também combate o crime, sob
a forma de uma horda de supervilões.
Até mesmo no Brasil tivemos o nosso "pulp hero", Dick Peter, criação do escritor paulista Jerônymo Monteiro
(1908-1970) para o rádio nos anos trinta, e mais tarde adaptado por ele em histórias que apareceram em várias edições populares
de livros.
Por esta altura fica claro que o nosso personagem dos quadrinhos, Batman, criado em 1939 por Bob Kane & Bill Finger,
é um legítimo herói pulp, herdeiro dessa tradição de milionários combatentes do crime, como O Sombra e Doc Savage, tanto que
no início o herói portava uma pistola e combatia o crime na base da violência irrestrita. Era publicado na revista "Detective
Comics" -- revista que daria nome à famosa editora DC, que ainda desenvolve as HQs de Batman.
O interessante da nova tentativa de retratar o herói no cinema é justamente o fato de que o filme "Batman Begins",
de Christopher Nolan, realiza o esforço mais fiel até a data, de retratar Batman como um herói pulp de fato. Antes, ele fora
uma caricatura, seja na série de TV e no filme de cinema criado a partir dela, seja nos filmes de Tim Burton e asseclas, com
seu excesso de estilo e carência de enredo e tensão dramática.
A explicitação da linhagem de heróis pulp que levou à criação de Batman é bastante clara no filme, com a passagem
do jovem Bruce Wayne (Christian Bale) pelas montanhas do Himalaia, onde ele obtém a disciplina mental que irá fundamentar
a sua concepção do super-herói, por meio do contato com uma organização secreta e imemorial de guerreiros e assassinos que,
lideradas por vilão Ra’s al Jur, o primeiro supervilão com quem Batman irá se defrontar para salvar a decadente
Gotham City. A semelhança com a trajetória do Sombra levou o crítico Rick Norwood a reclamar que esse início é quase idêntico
à história da origem do herói no filme de Alec Baldwin (in http://www.sfsite.com/06b/bb202.htm).
A cidade, a propósito, também explicita as suas raízes pulp da década de 1930, com arranha-céus que parecem saídos
do filme "Metrópolis" (1926) de Fritz Lang, ou da pena de Frank R. Paul, o principal capista da pioneira revista
de FC "Amazing Stories" (criada também em 1926). No filme, o principal centro criminoso é um gueto/cortiço que igualmente
lembra as veredas sombrias e violentas da Nova York dos anos trinta.
O filme se conduz bem, especialmente depois que Wayne consolida a personalidade de Batman. A montagem, em particular
a das lutas, é um pouco precipitada e fragmentada demais. Por outro lado, os efeitos especiais são ótimos e discretos -- o
que é uma virtude, neste caso.
Christian Bale está melhor como Batman, do que como Bruce Wayne, que ele interpreta de maneira um tanto sonolenta, não
muito à vontade. Mas o seu Batman, com a movimentação segura e a voz cavernosa impõe medo aos bandidos e emociona o espectador.
O excelente elenco de apoio -- incluindo Michael Caine como Alfred, o mordomo, Gary Oldman, como o ainda detetive Gordon,
e Rutger Hauer como o atual presidente das empresas Wayne -- dá mais personalidade ao filme, com destaque para Morgan Freeman
como Fox, o inventor que fornece a Bruce Wayne todos os equipamentos que o permitem se tornar o super-herói furtivo. Esse
aspecto fornece uma excelente atualização do personagem, em termos de uma factível ficção científica, que inclui tecidos eletricamente
ativos (a capa que se transforma em asa-delta) e trajes especiais de combate, além de um dinâmico veículo de assalto que serve
de Batmóvel.
Enfim, vê-se que o herói pulp, antiquado como a sua história pode dar a entender, é passível de atualizações que podem
levá-lo ao seu segundo século de existência.
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TRÊS BRASILEIROS CONTAM A HISTÓRIA DO HOMEM NO ESPAÇO
Roberto de Sousa Causo
“Espaçonaves Tripuladas: Uma História da Conquista do Espaço”, de Cláudio Oliveira Egalon, Jorge Luiz
Calife e Reginaldo Miranda Júnior. Editora da Universidade Federal de Santa Maria, 272 págs., R$ 25,00.
Duas nações no mundo são capazes de levar seres humanos ao espaço. O Brasil não é uma delas. Mas
somos um dos 9 ou 10 países com presença no espaço, sob a forma de satélites de comunicações e sensoriamento remoto, sem falar
de experiências orbitais em conjunto com a NASA e a preparação do primeiro astronauta brasileiro, nas instalações dessa agência
espacial americana. Fatos em geral desprezados pelo brasileiro, do homem comum ao intelectual, que ainda enxergam o assunto
como uma indulgência do Primeiro Mundo.
Três brasileiros dividem a autoria de “Espaçonaves Tripuladas”, livro da Universidade Federal de Santa
Maria: Cláudio Oliveira Egalon, cientista da NASA; Jorge Luiz Calife, escritor de ficção científica e jornalista científico;
e Reginaldo Miranda Júnior, ilustrador especializado em naves espaciais. Falam de satélites de comunicações, sistemas de posicionamento
global, experimentos médicos em baixa gravidade localização de jazidas minerais a partir da órbita da Terra e fotos tiradas
de satélites que nos permitem administrar melhor nossos recursos naturais. Mas falam brevemente. Estão mais interessados nas
glórias da conquista espacial, feitos de engenharia que incluem vôos tripulados até a Lua e estações orbitais que abrigam
homens e mulheres por meses a fio. Tratam, portanto, dos programas espaciais americano e soviético/russo, os dois países que
ainda levam seres humanos ao ambiente mais hostil conhecido pelo homem.
Após os textos introdutórios — um deles pelo astronauta Roger Crouch — o livro abre com uma árida descrição
de mecânica orbital. Deveria ter aparecido mais adiante no livro, já que o texto que vem a seguir, de Jorge Luiz Calife, é
fluente e temperado com irônicos comentários culturais. Teria cativado o leitor mais rapidamente.
Há mais problemas. O capítulo sobre mecânica orbital tem gráficos com legendas em inglês —
por provavelmente terem sido extraídos de alguma apostila da NASA. O livro todo merecia uma outra revisão, não apenas técnica
ou ortográfica. O português de Egalon, que vive nos Estados Unidos como pesquisador-sênior da Intelligent Optical Systems,
começa a soar estranho. Traduz, por exemplo, “raw meat” como “carne pura” e não “carne crua”,
como seria o correto. (De uma conversa dele com o seu amigo Guy Smith, antes dos dois embarcarem no Cometa do Vômito.)
Há ainda o descompasso das diferentes vozes que compõem o livro. Talvez o talentoso Calife devesse ter trabalhado
o livro todo, somando a sua verve aos textos dos colegas. A voz de Egalon assume um tom pessoal, ao narrar suas experiências
no “Cometa do Vômito” — um avião KC-135 especialmente modificado para simular a ausência de peso sentida
pelos astronautas em órbita. Com a ausência de peso vem a desorientação, seguida de enjôo — daí o apelido do avião.
Já a voz de Miranda Júnior é descritiva e seca, centrada nos detalhes físicos e técnicos das naves e base orbitais —
como cabe, talvez, a um ilustrador e modelista. Miranda Júnior fez as excelentes ilustrações que nos revelam a aparência dos
artefatos, concentrando-se em sua especialidade: naves e estações russas. É ainda responsável por um dos principais interesses
do livro: as informações sobre o programa espacial soviético/russo, agora disponíveis em detalhe, depois do fim da União Soviética
e a queda da cortina de segredo que cobria o país. “Espaçonaves Tripuladas” também traz um caderno de fotos.
O livro é dividido nas seções “O Passado”, “O Presente…” “E o Futuro!”,
fornecendo uma panorâmica dos principais projetos desenvolvidos no século 20: o Vostok soviético, que colocou o homem no espaço
pela primeira vez; seu análogo americano, Mercury; o programa X-15, avião-foguete pilotado em vôos suborbitais por audaciosos
pilotos de provas (geralmente esquecidos, quando falamos de astronautas); a Voskhod e a Gemini, naves com dois ou mais tripulantes;
as estações espaciais Soyuz e Skylab; e as naves Apollo e seus vôos até a Lua. Muito também é escrito sobre a tentativa frustrada
dos soviéticos de chegarem antes ao satélite natural da Terra.
Na seção sobre o presente, os autores tratam do Sistema de Transporte Espacial e o desastre com
o space shuttle Challenger, além do sucesso da estação espacial russa Mir, em todas as suas conformações. Egalon contribui
com uma capítulo sobre o processo de treinamento de astronautas da NASA, e com sua própria experiência em vôos de microgravidade
no KC-135. Calife então veste o chapéu de escritor de ficção científica para falar de missões a Marte; dos hiperaviões (capazes
de atravessar o Atlântico em poucos minutos) projetados para o futuro imediato; e de como seriam as naves que fariam o ser
humano deixar o Sistema Solar, rumo a outras estrelas. Embora ainda soem como ficção científica, a maioria dessas idéias são
projetos sólidos, com experimentos sendo realizados para viabilizá-las no futuro. Faltou menção ao Prêmio-X, que tenta popularizar vôos orbitais tripulados realizados pela
iniciativa privada. No todo, porém, “Espaçonaves Tripuladas” fornece uma deliciosa leitura que combina nostalgia
e vislumbres do que está por vir, trazendo às novas gerações o encantamento pela astronáutica. Ao tratarem com sólida competência
um assunto que ainda parece alienígena à nossa, os três autores conquistam para a nossa cultura brasileira esse campo de interesse
científico. Afinal, o passo de Armstrong na Lua foi um gigantesco salto para toda a humanidade, e “Espaçonaves Tripuladas”
pode até permitir que seu leitor enxergue o próprio programa espacial brasileiro com outros olhos.
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