Roberto de Sousa Causo -- Escrever com o Coração

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AS CRÔNICAS DE NÁRNIA: MAGIA PARA CRIANÇAS
O sucesso da série "Harry Potter", de J. K. Rowling, trouxe à atenção dos jovens leitores um sucesso mais antigo: "As Crônicas de Nárnia", de C. S. Lewis, publicadas originalmente entre 1950 e 1956. É sabido que entre um Harry Potter e outro, as crianças inglesas e americanas se voltaram para a série de sete livros escritos por Lewis -- o que é irônico, porque, lendo os livros, fica claro que Rawling foi influenciada pelas "Crônicas de Nárnia".

Um especialista em literatura medieval e nome importante na crítica literária, Lewis (1898-1963) também é tido como um dos maiores escritores cristãos do século XX, com obras como "Mere Christianity" (1943) e "Surpreendido pela Alegria" (1955, disponível no Brasil pela Editora Mundo Cristão). Sua ficção pertence ao mesmo contexto: "As Crônicas de Nárnia", recentemente publicadas pela Martins Fontes, e a "Trilogia Cósmica", uma ficção científica (com o clássico "Além do Planeta Silencioso", publicado no Brasil pela GRD em 1959), são alegorias cristãs.

Nascido em Belfast, Irlanda, Lewis teve na infância simples seu primeiro contato com o que chamava de "Alegria" -- um sentimento numinoso de contato com uma outra realidade. A Alegria se manifestou cedo, na terra imaginária que ele construía com o irmão, e que postumamente ganhou forma de livro em "Boxen: The Imaginary World of the Young C. S. Lewis" (1985). Boxen está no centro das "Crônicas de Narnia", com seus animais falantes e sua mistura de criaturas provenientes de mitologias clássicas e nórdicas.

Após ser ferido na II Guerra Mundial, Lewis retornou aos estudos em Oxford, alcançando ali posição docente em 1925. Na prestigiosa universidade, viria a conhecer J. R. R. Tolkien (1892-1973), com quem, entre outros, formaria o grupo dos "Inklings", uma sociedade informal interessada em fantasia. As primeiras reuniões dos Inklings aconteceram em 1933. Em "The Inklings: C. S. Lewis, J. R. R. Tolkien, Charles Williams and their Friends", Humphrey Carpenter, um dos biógrafos de Tolkien, trata detalhadamente dessa sociedade literária.

Nárnia nasceu nas reuniões dos Inklings, em 1949. A reação dos amigos de Lewis foi negativa -- Tolkien detestou o primeiro livro, "O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa" (1950). Embora os dois escritores partilhassem do mesmo ideal com respeito à fantasia -- a crença de sua importância como uma fonte de experiências que podem atingir o espírito, sem engajar diretamente o intelecto --, o temperamento minucioso e as idéias de Tolkien a respeito de como escrever uma obra de fantasia divergiam do primeiro livro das Crônicas. Tolkien rejeitou a ligeireza do texto e a inconsistência do seu universo ficcional -- o "mundo secundário", segundo a teoria do autor de "O Senhor dos Anéis".

Mas "O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa" foi lançado com grande sucesso, seguido de perto por "O Cavalo e o seu Menino", "O Príncipe Caspian", "A Viagem do Peregrino da Alvorada" (talvez o melhor da série, depois de "O Leão..."), "A Cadeira de Prata", "O Sobrinho do Mago" (o primeiro na cronologia da série), e "A Última Batalha". Sete livros que vêm encantando leitores desde então. No Brasil, foram publicados pela Martins Fontes em traduções de Paulo Mendes Campos e Silêda Steuernagel, e reunidos em um único volume belamente ilustrado por Pauline Baynes, em 2002.

Em "O Sobrinho do Mago", o menino Digory descobre o anel secreto pertencente ao seu tio, o mago André. Com ele, Digory e a amiga Polly vão a um estranho mundo onde são capturados por uma feiticeira, que retorna com eles a Londres e põe a cidade em polvorosa. No mundo paralelo de onde viera a bruxa, Polly, Digory e seu tio André assistem à criação de Nárnia, com todos os seus seres mitológicos e animais falantes, a partir da vontade do leão Aslam, a entidade mais poderosa de toda a série.

"O Leão..." trata de Susana, Lúcia, Pedro e Edmundo, e de como foram levados, durante a guerra, a uma casa que dava entrada, pelo guarda-roupa, à Nárnia. Muito tempo se passou, desde a criação do mundo mágico (essa é uma característica do relacionamento entre o nosso universo e o de Nárnia: poucos meses ou anos aqui, implicam centenas ou milhares de anos lá). As crianças são logo apanhadas em um conflito entre os habitantes de Nárnia e um feiticeira que joga Edmundo contra os amigos. Aslam, a figura do Cristo nessa terra mágica, é capturado pela bruxa. Eventualmente, as crianças assumem um papel decisivo, elevando-se à condição de primeiros reis e rainhas humanos de Nárnia.

As aventuras narradas em "O Cavalo e seu Menino" começam num país vizinho a Nárnia, a Calormânia, de cores orientais. O menino Shasta foge do país com o cavalo falante de Nárnia, Bri, e acaba se encontrando com Peter, Edmundo, Susana e Lúcia, quando ainda eram monarcas.

Em "O Príncipe Caspian" muito tempo se passou em Nárnia, agora dominada por telmarinos que baniram os animais falantes e seres mágicos do país. Os quatro meninos e meninas são chamados para intervir, e, de novo como grandes guerreiros, retornam a Nárnia. Mas o episódio conta na verdade a história de Caspian, que acredita na magia de Nárnia, apesar de ter sido criado para rejeitá-la. Torna-se o novo monarca do lugar, com a bênção de Aslam. Nesse livro aparece o camundongo falante Ripchip, um dos personagens mais populares e divertidos da série. Outro detalhe interessante é que agora não são nem anéis mágicos nem guarda-roupas que dão entrada à Nárnia, mas uma estação ferroviária -- símbolo de entroncamentos e destinos, que veríamos mais tarde em "Harry Potter".

"A Viagem do Peregrino da Alvorada" é bem diferente dos outros. Embora jornadas sejam comuns, aqui trata-se de uma "viagem fantástica", uma das tradições formativas da fantasia e da ficção científica. Caspian decide aventurar-se pelo mar, em busca da terra de Aslam ou do fim do mundo. Assim como em outros episódios, há um menino que, pela aventura, cresce moralmente: "Era uma vez um garoto chamado Eustáquio Clarêncio Mísero, e na verdade bem que merecia esse nome", é como o livro inicia.

Eustáquio, que é seguido pela experiente Lúcia, logo se indispõe com Ripchip, que é em todas as ocasiões (mesmo quando não devia) nobre e cavalheiro. Os aventureiros são vendidos como escravos, antes de escaparem e darem um fim a essa prática, nas Ilhas Solitárias; mais adiante, Eustáquio transforma-se em dragão, o navio é atacado por uma serpente marinha, seus tripulantes escapam à tentação do ouro, enfrentam inimigos invisíveis, conhecem habitantes do fundo do mar e chegam, enfim, ao fim do mundo. Um romance que possuí, realmente, imagens de força mítica e momentos de humor e de companheirismo que falam à criança.

A partir daí as Crônicas ficam mais sombrias e suas alegorias cristãs mais claras. "A Cadeira de Prata" leva Eustáquio e a novata Jill Pole a terem uma visão dos submundos de Nárnia, quando os dois, levados ao mundo mágico, partem com um gnomo dos brejos em busca do príncipe Rilian, filho de Caspian. Após enfrentarem gigantes, chegam ao mundo infernal dominado por uma bruxa. Todas as mulheres de poder de Nárnia são lindas e muito más, o que sugere a posição negativa do autor quanto à sedução feminina...

"A Última Batalha" é o mais próximo de uma ficção religiosa pura. Todos as crianças de Nárnia são convocadas e aparecem nesta história, que se centra, porém, em Eustáquio e Jill e no último rei de Nárnia, Tirian e seu companheiro, o unicórnio Jewell. Enfrentam um falso profeta (um macaco veste um burro com a pele de um leão e o faz fingir ser Aslam) e um demônio, na versão de Nárnia, e o livro faz um ataque ao materialismo e o ateísmo. Todos acabam se instalando em um mundo platonista, um mundo mais real do que os mundos (o nosso ou o de Nárnia) que o espelham, de maneira turva -- o que era uma crença de Lewis e de Tolkien. A certa altura, Digory exclama: "Está tudo em Platão!" Mas, claro, trata-se também de uma visão do paraíso. As imagens são bonitas e inquietantes. Lewis não realiza um argumento teológico, mas fornece sim uma visão mística de grande força e inspiração. Este deve ser, porém, o livro mais difícil para as crianças.

O enredo sobre o falso profeta e como ele vendia os animais e os anões de Nárnia como escravos a uma potência vizinha lembra aquele da excelente trilogia "Liveship Traders", de Robin Hobb, ainda inédita por aqui. Os animais falantes e as passagens para outras dimensões estão também presentes na trilogia "Fronteiras do Universo", de Philip Pullman, outra obra fabulosa de fantasia para crianças, disponível no Brasil pela Objetiva.

Por 50 anos "As Crônicas de Nárnia" vêm encantando crianças e adultos. Elas apresentam crianças poderosas e mundos mágicos que brotam da nossa própria experiência. Agora, com a adaptação de "O Leão, A Feiticeira e o Guarda-Roupa" em um filme dirigido por Andrew Adamson para a Buena Vista, têm a chance de alcançar um público ainda maior. O filme foi filmado na Nova Zelândia, e o segundo projeto da série, "O Príncipe Caspian", já está sendo desenvolvido.