Coleção Fantástica: Os Novos Pulps Brasileiros.
"Enquanto o mercado editorial brasileiro continua a ignorar a literatura de gênero, os editores de fanzines esforçam-se
por encontrar caminhos que viabilizem a arte fantástica no Brasil". É com esta frase que Cesar R. T. Silva e Marcello
Simão Branco apresentam sua Coleção Fantástica, uma série de pequenos livros dos gêneros ficção científica, horror e fantasia,
editados de forma artesanal e com tiragens limitadas. Dando assim a possibilidade, ainda que limitada, a bons escritores brasileiros
de divulgar suas obras. Obras estas que estamos a resenhar.
-------------------------------------------------------
Gerson Lodi-Ribeiro. "Quando os Humanos Foram Embora. Coleção Fantástica Nº1, maio de 1999. Formato bolso, 84 páginas.
Capa: Ilustração de Cerito.
-------------------------------------------------------
"Quando os Humanos Foram Embora", de Gerson Lodi-Ribeiro, é sem dúvida, apesar de muito breve e merecedor de
uma continuação mais robusta, um dos melhores livros de ficção cientifica que já tive a oportunidade de ler.
O autor é um dos nomes mais representativos deste gênero no Brasil, formado em Engenharia Eletrônica, pois como ele mesmo
afirma, "achava que eram estes que construíam os foguetes que iam levar as pessoas à Lua"; quando notou o erro já
era tarde de mais, ainda assim cursou também Astronomia. Escritor prolífico, tem obras tanto de FC hard, artigos de divulgação
científica e crítica literária, e escreve história alternativa, além de ser editor (da extinta editora Ano Luz).
Num futuro distante os seres humanos alcançam tecnologias surpreendestes de viajem espacial, regeneração biológica e teletransporte,
se aventurado pelo nosso braço da Via-Láctea. Entretanto, o universo se mostra um tanto hostil para os seres humanos. Apenas
três mundos parecidos com a Terra são descobertos sem habitantes, sendo assim passíveis de colonização, enquanto quatro outras
raças alienígenas são contatadas, três delas humanóides semelhantes a terrestre. Mas Lodi-Ribeiro não entra em maiores detalhes
sobre estas. Seu objetivo é nos apresentar o primeiro contato entre humanos e raça dos ilianos.
O ponto forte do livro é a descrição minuciosa dessa raça por parte do autor: são os ilianos heterótrofos, pseudo-vertebrados,
moluscóides dotados de exoesqueleto e simetria penta-axial, possuindo como órgãos manipuladores, tentáculos. São dotados de
sonares orgânicos, respirando gás sulfídrico e liberando ácido sulfuroso. Seu ciclo vital é composto de três estágios: larva,
adulto e ancião.
Interessante e complicada descrição de uma biologia extraterrestre, entretanto no decorrer da história estas informações
são passadas e esclarecidas de forma extremamente competente, sendo possível, ao concluir sua leitura, formar uma imagem bem
precisa destes seres extraterrestres. Outro aspecto interessante deste livro são as interações realizadas entre esta espécie,
dotada de características tão distintas das humanas, com os próprios humanos e também com inteligências artificiais.
Esta tríade de diferentes espécies é bem trabalhada pelo autor, que explora com muita competência os problemas de comunicação
e objetivos gerados pelas diferentes percepções de mundo de cada espécie.
Gerson descreve cada mundo apresentado aos leitores, Ílion (habitado pelos ilianos, coberto por um manto de gelo semelhante
à Europa), Tinuvel (habitado por humanos), e o sistema de Oricterope. Dados sobre atmosfera, clima, distância em UA, excentricidade
orbital e outros são apresentados ao leitor, sempre com a competência de quem sabe do que está falando.
A história em si se passa em torno do primeiro contato (uma das melhores descrições já feitas na FC), a descoberta de
uma nova tecnologia e de uma catástrofe cósmica, que lógico, não darei mais detalhes aqui.
Assim Gerson nos apresenta um futuro otimista, em que o desenvolvimento científico está ligado a uma conscientização maior
de nossas atitudes éticas.
Sem dúvida temos uma boa história, na qual o uso correto e verossímil da ciência, aliado a um enredo de primeira, resultam
numa obra muito superior à pouca visibilidade que teve. Afinal, no país das vendas fáceis de livros de magia, e com altos
índices de analfabetismo científico, o desconhecimento do público e desinteresse das editoras por este tipo de obra só tende
a crescer.
**Edgar I. Smaniotto
-------------------------------------------------------
Miguel Carqueija. "A Esfinge Negra". Nova Coleção Fantástica Nº2, janeiro de 2003. Formato bolso, 100 páginas.
Capa: Ilustração de Cerito.
-------------------------------------------------------
"A Esfinge Negra", de Miguel Carqueija, é uma obra que se enquadra dentro da chamada "space opera"
"golden age" -- para aqueles poucos entendidos das nomenclaturas da FC, basta dizer que é uma história de aventuras
espaciais, semelhante à série "Star Wars".
Miguel Carqueija, é um escritor bastante conhecido pelos fãs de ficção científica brasileiros, especializou-se em contos
e pequenas novelas, e também mini-contos, variando entre aventuras (geralmente com heroínas), histórias humorísticas e satíricas
e histórias de terror.
A ficção científica de Carqueija não tem o mesmo compromisso com a verossimilhança biológica e tecnológica que a de Gerson.
Seus personagens são humanóides. Ele nos apresenta um futuro não muito diferente da atualidade: Sim, os seres humanos vão
para o espaço, mas ainda estão intimamente ligados às mesmas dificuldades da vida moderna atual. O crime organizado existe,
ainda mais forte, a corrupção é corriqueira, assim como a prostituição. E as antigas crenças religiosas ainda estão bem firmes.
A trama se desenrola tendo como principal componente à vingança pessoal de uma mulher que se intitula "A Esfinge
Negra", contra um criminoso que se torna um político de grande poder.
Estão lá descrições de armadas espaciais com 40 encouraçados, 13 belonaves e exércitos gigantescos de 2.700.000 homens.
Além de especulações sobre possíveis dimensões e universos paralelos. Num universo bastante povoado, com milhares de planetas
habitados e colonizados.
Carqueija desenvolve assim uma boa aventura espacial, no melhor estilo pulp. Imaginando um futuro em que o desenvolvimento
tecnológico apenas aumenta nossa capacidade de reproduzir atitudes eticamente reprováveis. Ainda assim sempre existem heróis
para segurar a barra.
**Edgar I. Smaniotto
|
arte de Fred Gambino |
"Non-Stop" já foi publicado em português como "Nave Mundo", N.º 333 da famosa Coleção Argonauta, da Livros
do Brasil, de Lisboa. Essa tradução foi lançada em 1985.
------------------------------------------------------------
Roberto de Sousa Causo resenha o primeiro romance de Brian W. Aldiss
"Non-Stop", Brian Aldiss. London: Gollancz, SF Masterworks N.º 33, terceira edição, 2004 [1958; 2000], 241 páginas.
Capa de Fred Gambino.
------------------------------------------------------------
Este é um romance de FC sobre nave de gerações. Ao que consta, Aldiss escreveu este que é o seu primeiro romance, após
tomar contato com uma seqüência de duas histórias escritas por Robert A. Heinlein, "Universe" (1941) e "Common
Sense" (1941; as duas como livro, "Orphans of the Sky", 1963). Achando a idéia da nave de gerações mal desenvolvida
por Heinlein, resolveu fazer melhor.
O romance se divide em quatro partes: "Quarters", "Deadways", "Forwards" e "The Big
Something" (todos termos tomados da "geografia" do lugar). Abre com Roy Complain, o personagem principal, perdendo
sua mulher, Gwenny, durante uma caçada. Castigado por sua comunidade -- que é descrita em termos de uma cruel Idade das Trevas
-- ele se une ao picaresco padre Henry Marapper e a um grupo de três outros homens -- Ern Roffery, Wantage, e Bob Fermour
-- para tentar encontrar a sala de comando da nave, pois Marapper teve acesso às plantas do aparelho. Atravessaram trechos
em ruínas, repletos de plantas que cresceram fora de controle (as "pond") e de mosquitos.
A sociedade em que vivem é violenta e esquálida, por uma religião que lembra uma versão corrompida da psicanálise freudiana,
em que as pessoas se cumprimentam com uma dizendo "expansão do seu ego" e com a outra respondendo "às suas
custas". Trata-se de uma reflexão do autor sobre o comportamento social humano, a partir da observação de animais em
confinamento extremo. Seja sexual ou violentamente, as pessoas no romance não se furtam em obedecer ao mandamento de que o
indivíduo não deve se reprimir. Percebe-se logo, também, que os habitantes dos Quarters (alojamentos) não sabem que estão
em uma espaçonave, e que muitos elementos técnicos se tornaram lendas ou expressões idiomáticas: eles não dizem, por exemplo,
"go to hell (inferno)", mas "go to hull (casco)". E assim por diante. Trata-se, portanto, de uma sociedade
degradada ou involuída -- tema comum na FC dos anos 1950 e 60 (com a possibilidade da guerra atômica logo ali...).
Esse grupo de "heróis" (por serem anti-heróis, na verdade) que parte em uma "quest" estão perfeitamente
integrados na mentalidade do seu lugar,ou seja, são também violentos, vis e mesquinhos. Em "Deadways" eles se envolvem
com ratos semi-inteligentes que também habitam a nave, e com os Gigantes, seres antes relegados ao terreno do mito. O seu
número é diminuído, até que eles cheguem a "Forwards", a proa da nave, onde existe uma outra sociedade, um pouco
mais "avançada", mas também pronta a usar de métodos violentos como tortura e assassinato.
Apenas Complain, Marapper e Fermour chegam a essa seção da nave, sendo interrogados brutalmente ou por artimanhas psicológicas,
por uma jovem e bela mulher chamada Laur Vyann, por quem Complain se sente imediatamente atraído. Vyann e seu superior, Scoyt,
determinam que ele lhes pode ser útil, ao mesmo tempo em que demonstram tolerância para com Marapper.
O interesse amoroso, nesta altura da narrativa, destoa da crueza e da violência casual das relações humanas descritas
até esse ponto, e soa como uma situação stock em que o herói encontra a heroína. Mas é através do olhar de Vyann que ficamos
sabendo da qualidade redentora de Complain -- na crise, enquanto a maioria faz sublinhar o pior de suas personalidades, ele
parece encontrar o seu melhor. Em rápida sucessão de fatos que sugerem que a situação da nave vinha se precipitando sem o
concurso dos heróis, surge um grupo de renegados que se oferece para lutar do lado dos Forwards contra os Gigantes. E esse
grupo é liderado por Gregg, o irmão há muito desaparecido de Complain, que vai ter com ele. Muitos dos renegados são mutantes
(outro motivo ficcional comum à FC das décadas de 1950 e 60).
Entre os inúmeros feridos, está o companheiro desaparecido de Complain, Wantage. A luta se precipita quando Gregg dá a
Complain, como sinal de boa vontade, um cortador laser, com o qual primeiro ele e depois Scoyt parte para desmontar a nave
a fim de descobrir o esconderijo dos Gigantes. Mas não sem antes que Complain e Vyann descobrissem a destruída sala de controle.
No ínterim, os habitantes da nave, em seu comportamento irracional e sem noção exata da precariedade em que se encontram,
vão destruindo sistemas imprescindíveis para a sua própria sobrevivência.
A esta altura, o livro traz muitas reviravoltas e surpresas: traições e revelações inesperadas que reformulam o modo como
vínhamos acompanhando as aventuras dos passageiros da nave de gerações, culminando com uma última imagem, poética, de desintegração
social.
Aldiss claramente se coloca contra as convenções literárias tradicionais da FC golden age, nesta história sem heróis e
na qual a supertecnologia não se sustenta e o racionalismo recua diante do lastro mais primitivo do inconsciente humanidade.
O romance é um tanto desequilibrado, quando confrontamos os seus momentos iniciais, mais lentos, e os momentos finais, um
tanto precipitados, e há nessa precipitação, algumas coisas tiradas do chapéu -- como Complain encontrando passagens secretas
de um momento para o outro, quando o pessoal dos Forwards, vivendo ali há gerações, as teria deixado passar...
**Roberto de Sousa Causo
|
|
Edgar Smaniotto continuará tratando de outros títulos da Coleção Fantástica quinzenalmente neste mesmo espaço.
|
|
|